ADOÇÃO - MANTER CRIANÇA EM ABRIGO É CRIME - Sávio Bittencourt

Sávio Bittencourt é Procurador de Justiça na Infância e Juventude do Estado do Rio de Janeiro. Ele é escritor, autor de cinco livros, entre eles, o Manual do Pai Adotivo, professor, consultor em meio ambiente e sustentabilidade e pai de cinco filhos, três biológicos, todos adotados. Nesta entrevista, Sávio Bittencourt fala, sem meias palavras, sobre os problemas dos processos de adoção no Brasil, chama de crime e nazismo manter criança em abrigo e conta com sinceridade como é ter uma família colorida.

Me conte algo que não sei.

O Cadastro Nacional de Adoção mudou para pior. O Conselho Nacional de Justiça precisa ter a responsabilidade e a humildade de voltar atrás e consertar o que fez. O modelo anterior que foi substituído permitia uma série de interações mais produtivas do que o atual. Antes era possível visualizar os casais que queriam adotar e as crianças, hoje você não consegue fazer isso, você só vê as crianças, há uma série de dificuldades de aplicações, não dá para ver o grupo de irmãos.

O cadastro precisa voltar para o modelo anterior, antes que se encontre um terceiro modelo que seja o ideal, tem que voltar para o antigo. Apesar de ter sido uma intenção de simplificação, essa simplificação tirou a funcionalidade, que era uma ótima ferramenta na busca ativa para juntar crianças e famílias substitutas.

-O que exatamente é a busca ativa por uma criança? A pessoa que quer adotar deve fazer isso? Como?

O plano nacional de convivência familiar e comunitária (Lei complementar ao Estatuto) deu aos grupos de apoio a adoção o papel de fazer essa busca ativa. E eles fazem assim, eles recebem informação do Judiciário e do Ministério Público daquelas crianças que estão disponíveis para adoção sem candidatos a adoção no local e se faz a busca ativa pelos grupos. Se o cadastro funcionasse maravilhosamente, talvez a busca ativa por grupos de apoio não fosse necessária, mas como ele ainda não funciona , é necessário que se faça esse tipo procura.

- E as pessoas que estão na fila para adotar porque não podem visitar abrigos? Não seria uma forma de incentivar na adoção de crianças maiores?

Abrigo fechado é um crime que se comete contra a criança. As crianças não estão em regime fechado porque mataram alguém, inclusive a Lei Nacional de Adoção colocou no Estatuto da criança e do adolescente um artigo que determina que os pais candidatos, habilitados a adoção, sejam colocados em contato com as crianças, com todas as reservas para não criar falsas expectativas, com todos os cuidados, mas que saibam quem são essas crianças. Nós precisamos deixar que as histórias de amor aconteçam. Existem os encontros. Há pessoas que pensam em adotar crianças pequenininhas, mas quando encontram uma outra criança, com um outro perfil, que nem tinham pensado, porque se falava de uma criança imaginária, não de uma criança de verdade, que existe, que está ali, que tem uma forma de olhar, que tem uma forma de falar, que cativa.
Não há nenhum artigo que determine que os abrigos estejam fechados. Abrigo fechado é uma coisa que está completamente fora do sistema de adoção. Obviamente essas visitas tem que ser controladas, acompanhadas, para que não haja uma repercussão negativa nas crianças. É muito melhor correr esse risco bom de manter os abrigos abertos, do que manter os abrigos fechados e a criança continuar varrida para debaixo do tapete como acontece em muitos lugares, é um crime contra a infância. O ministério público não pode concordar com isso, ele precisa manter os abrigos abertos, é função dele, dar visibilidade as essas crianças.

- Como estão os processos de adoção do ponto de vista de uma família que sonha em ter um filho?

Essa é a pergunta mais difícil porque as realidades são totalmente diferentes, em diferentes cantos do país. Eu acredito o seguinte, o processo de adoção não pode demorar mais de nove meses, que é o período de uma gestação. E a pessoa precisa se habilitar antes de adotar. Agora quanto mais ela amplia o perfil dela, mais chance de adotar rápido ela tem. As pessoas fazem questão de criança até três anos de idade, as vezes a criança que está disponível tem três anos e meio, quatro, e é uma adoção tão sensacional quanto a outra. Só que você é obrigado a fixar um limite e ai você fixa e acaba perdendo um monte de criança.

- E do ponto de vista da criança como está, o processo de uma criança que entra no sistema de institucionalização demora muito na Justiça? Crianças ainda crescem nos abrigos, passando três, quatro anos de sua vida lá, porque a Justiça não libera para a adoção?

Pode acontecer sim, depende do grau de comprometimento do poder judiciário, há locais em que não há equipe técnica e a morosidade é grande.

- É razoável você ter um técnico para tratar de um cadastro com 180 famílias?

Não, não é razoável. Qualquer instituição pública precisa ter um atendimento que cumpra a política a que se destina, de forma eficiente. O ministério público e a magistratura tem que dar o exemplo de agilidade. Eu acho que o que melhorou foram: a existência de audiência concentrada e a obrigação da revisão dos processos a cada seis meses. Eu acho que essas coisas de certa forma trouxeram luz para o tema, ainda não estão funcionando a mil maravilhas do ponto de vista de esvaziar abrigo, como a gente queria. Mas trouxeram uma obrigatoriedade de ação desses entes, a formação de um plano de acompanhamento da situação dessas crianças, então que certa forma documenta a história da criança na instituição, que vai narrar os esforços de reintegração familiar, se for prudente. O que acontece hoje é que essa lei ela aterrissa no caos, num sistema em que as pessoas se acostumaram a andar lentamente e não ter pressa. No caso da infância é necessário que se tenha pressa.

- Ainda tem muita criança crescendo em abrigo e sendo submetida a tentativas repetidas de reinserção familiar?

Ainda tem muita criança crescendo em abrigo. Em nome da reintegração familiar e da tentativa de colocação, quando na verdade o que se faz é não se fazer nada, deixar a criança lá e fazer arremedos de aproximação com famílias, onde a recuperação é bastante improvável. Sempre errando em favor do adulto e nunca a favor da criança. E é por isso que ainda há crianças crescendo em abrigos.
De que forma toda essa situação das crianças pode melhorar? Onde a Justiça e a sociedade devem investir?
Eu acho que essas mudanças vão ter efeito a médio e longo prazo. Com as audiências concentradas vai ficar claro que as tentativas de reinserção familiar não podem ser feitas de forma exagerada, situações que fazem a criança sofrer várias vezes. É uma mudança de paradigma que a gente está começando a viver. Mas ainda as pessoas agem de forma muito demagógica. Não é em função da pobreza que se perde a criança, é em função da falta de cuidado que se perde a criança, a análise é mais objetiva.
Em razão da falta de afeto dessa família, eu provo que eu tenho afeto quando eu limpo, eu mando para a escola, eu educo. Geralmente a família não existe, ela é desestruturada, muitas vezes é uma mãe que tem filhos com várias pessoas diferentes, que é depende de drogas, que se prostitui, não se interessa em manter o filho, porque o filho atrapalha essa vida que ela leva. E em vez de ter que julga-la, condena-la a perder a sua “coisa” eu simplesmente decido que a criança tem direito a viver uma relação que a proteja. Então o foco não é condenar essa mãe, é proteger a criança. Até nisso o processo de destituição tem que ser mais humanizado. A criança é um ser humano que tem mais direitos porque é um ser em formação.
A institucionalização de uma criança, ou seja, manter uma criança em abrigos não é solução. Você acha que a sociedade e a Justiça já tem plena consciência disso ou ainda tem quem defenda isso como solução?
Eu acho que a sociedade ainda aceita passivamente. Não acho que tenha gente que defenda isso, mas poder ser, tem gente que defende o nazismo.

- O que acontece com uma criança que vive em abrigo?

É muito triste, é uma criança que não pertence a ninguém, não se relaciona com as pessoas num patamar de sujeito de direitos, sujeito de afeto, de ser amada, agraciada, que tem um nome, que tem um olhar, uma forma de ser tratada especial.
Ela é mais uma, num ambiente coletivo, que os psicólogos cansaram de comprovar isso, é nefasto, é devastador, para o sistema cognitivo, para sua inteligência, para a sua formação, para a sua saúde. Quantas crianças estão doentes e são adotadas e se curam de doenças num espaço de tempo pequeno, impensável, num curto espaço de tempo, porque o que cura é a existência do amor, é a existência do cuidado.

- Para o sistema de adoção funcionar o que é importante se ter em mente?

A gente tem que ter um sistema que trata a criança como a pessoa principal das relações que ela vive. Quem é mais importante nesse processo é a criança, não é o pai e a mãe, nem os pretendentes a adoção.  Quando ela está nesse papel principal, todo o processo é para ver o que é melhor para ela. Se a família de origem é amorosa, caiu o barraco da família e teve que abrigar um mês, é uma coisa, mas há amor, há afeto. Agora sair convencendo as pessoas a amar, ensinando as pessoas a amar é uma pretensão completamente descabida, e até um preconceito com essa pessoa que não quer o filho.
A mãe acaba fazendo um discurso politicamente correto de que ama o seu filho, quando na verdade os atos dela mostram que ela está preocupada com outras coisas. Quer se convencer a amar, inventam que o problema é a falta de políticas públicas. Há muitos lugares com políticas funcionando, bolsa família, escola, moradia, tratamento para dependência. Não é fácil sair de uma situação de drogas, e ninguém pode congelar a criança até que a mãe melhore para cuidar dela. É romântico demais para se sacrificar uma infância inteira. A gente ter que passar a errar em favor da criança, e dar essa criança para uma família previamente habilitada, disposta a amar, disposta a tratar com carinho, sem ter que condenar a mãe biológica por isso.

- Como é uma família adotiva?

É uma família como as outras, que tem os mesmos problemas. A adoção não é motivo para nenhuma distinção da ordem afetiva que se estabelece. Quando se tem filhos biológicos e adotivos é muito comum que as pessoas perguntem: mas eles se gostam? Os irmãos, eles brigam? É claro que eles brigam, eles são irmãos e como irmãos eles brigam como todo irmão. Eles se ajustam, eles se protegem, eles se amam, e eles brigam, nessa relação que é a família, simbiótica, pessoas que se ajudam, que ao mesmo tempo competem e fazem as pazes.
O ambiente é esse, não há uma família ideal, as famílias de verdade elas tem esses problemas. E a família adotiva quando resolve falar da adoção abertamente, quando resolve celebrar a adoção, em vez de esconder, ela se torna, aí sim, um pouco diferente porque ela celebra o fato de você amar a pessoa que não gerou e que nem teria a capacidade de gerar. O mais legal é isso, é que você ama profundamente aquela pessoa, que você não gerou, e jamais sairia do seu cromossomo.
Só a adoção, esse encontro mágico, pode trazer a convivência com uma pessoa que é essencial para você, e que foi gerada por outra pessoa, e que é diferente, tem outra cor. São famílias coloridas, em que as pessoas não baseiam a sua relação de amor apenas nas relações de semelhança física e de identidade de cromossomos.  Deram um chute no pau da barraca que essa bobagem, e resolveram amar livremente, o que é melhor.

- Muitas pessoas tem preconceito contra adoção porque os filhos vão querer conhecer os pais biológicos, ou por que as crianças serão mais difíceis?

Primeiro eles acham que os filhos adotivos vão te matar. Aquela menina Suzana Richthofen que matou os pais era filha biológica, não adotiva. Não se herda o mal ou o bem, se aprende, é da convivência. É claro que se você mimar uma criança em vez de educar vai dar problema ou em vez de adotar, criar. Criança adotada não é filho de criação, criança adotada é filho de verdade.  Agora com relação a informação sobre família biológica é natural, e é um direito. Isso deve ser enfrentado com as crianças com as crises que são inerentes a essa busca. Com treze anos, ele pode querer saber porque foi abandonado, porque foi entregue. Mas quando você semeia amor nunca se perde a colheita.
Então um pai adotivo que passa por isso, deve se colocar a disposição. É que é mais uma curiosidade, o filho não vai embora, morar com a mãe biológica, nem em novela isso é dito mais. É mais uma resposta para fechar uma lacuna, é mais uma resposta da sua própria história, do que qualquer questionamento ao amor do pai adotivo. Tem que se falar abertamente sobre adoção, e se dá o direito de contar essa história. Conheço crianças que quiseram ir atrás dessa história e outras que não, que disseram não quero ir, não quero saber disso agora porque está embaralhando minha cabeça, quero fazer vestibular, quero fazer outra coisa. É uma decisão que o filho tem que tomar quando crescer e o pai tem que mostrar toda a segurança do mundo, ele investiu amor demais não vai perder sua colheita.

- O que você diria hoje para uma família que está pensando neste momento em adotar?

Só adote plenamente convencido de que essa é a melhor solução.  Eu sempre fui um incentivador da adoção, mas a adoção não é um oba-oba, nem um passeio no País das Maravilhas. Filho dá trabalho, filho faz pirraça, perde ano na escola, filho fuma atrás da igreja. Você vai ter que exercer a paternidade com a maior autoridade, sem medo, e a gente comete muito erro nesse processo, é um processo de aprendizado, quando você acha que aprendeu, o filho muda porque cresceu, e você desaprende, então é algo que você tem que rearranjar, o tempo inteiro.
Agora é importante lembrar, a adoção não foi feita para fazer caridade, a adoção não foi feita para consertar casamento, nem para suprir carência. Se for isso parte para um apadrinhamento, vai contar história num abrigo, adoção não é teste drive, adoção é para sempre. A pessoa que vai adotar ela tem que saber que ela tem uma jazida de afeto no peito dela, que ela pode dar a criança e que é de verdade, que não é modismo.
Dito isso, depois desse pressuposto que estou falando, venha  porque é uma coisa maravilhosa, venha porque muda a sua vida, é revelador, é motivador, é emocionante, é algo que como não acontece comumente, porque geralmente você tem filho procriando, traz tanta coisa nova, tanta energia, tanta coisa positiva, você gostar de alguém diferente de você, alguém que não saiu das suas entranhas, que você não produziu fisicamente, que acaba você vendo o mundo diferente, mudando outras áreas da sua vida. Embora esse não seja o papel da criança, o fato de você amá-la transforma você numa pessoa melhor.

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Comentário de MÁRCIAAMARAL AMARAL CUNHA TOSTES em 19 janeiro 2016 às 10:26

Adoção:o melhor caminho.

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