Como tantas outras mulheres vítimas de violência de gênero, Eliza Samudio pode estar morta. Sua morte foi anunciada por ela mesma, num vídeo que todos já vimos na televisão ou no Youtube. A moça havia procurado a Delegacia de Proteção à Mulher no Rio de Janeiro para noticiar agressões e ameaças que sofrera de seu ex-amante, mas nada aconteceu. Depois disso, tudo aconteceu.
Não se sabe se Bruno, o goleiro que agarrava todas, tomou um frango. Pode ser pior. A maior derrota da carreira do arqueiro do Flamengo, que, ao que tudo indica, deverá empenhar-se como nunca na defesa… de sua inocência.
As suspeitas que sobre ele recaem são fortíssimas. Um urubu pousou na trave. Porém, considerando a sagrada presunção de inocência, não é sobre a culpabilidade que falarei aqui, mas sobre o caso-modelo.
Há algumas questões jurídicas interessantes. Pinço três delas:
1. Em tese, quais foram os crimes praticados pelos suspeitos?
Caberá ao Ministério Público estabelecer a classificação provisória dos fatos. E isso será feito quando for oferecida a denúncia à Vara do Júri. Se eu estiver chutando na direção do gol, diria que houve:
- a) dois crimes de sequestro e cárcere privado (art. 148, §2º do CP) contra mãe e filho, com penas de 2 a 8 anos de reclusão.
- b) homicídio triplamente qualificado (art. 121, §2º, incisos I, III e IV, do CP), por motivo torpe (vingança e pecúnia), meio cruel (asfixia) e mediante dissimulação ou surpresa, com pena de 12 a 30 anos de reclusão.
- c) destruição e ocultação de cadáver (art. 211 do CP), com pena de reclusão de 1 a 3 anos.
- d) subtração de incapaz (art. 249 do CP), com pena de 2 meses a 2 anos de detenção.
O Ministério Público poderá ainda cogitar imputação pelo crime de quadrilha (art.288, do CP), de configuração incerta.
Tudo é hipótese. Ainda não houve o apito inicial. Não há ação penal. O goleiro está prestes a ir para o banco… dos réus. Se tudo isso ficar provado, essas penas poderão ser aplicadas cumulativamente, segundo o art. 69 do CP. A ameaça é de um escore contrário de mais de 17 anos de reclusão, se consideradas as penas mínimas previstas em lei. São muitos gols contra a própria meta. Noutro país, caberia penalidade máxima.
2. Qual o juízo competente para o caso do goleiro rubro-negro?
Todos viram uma certa concorrência entre autoridades do Rio de Janeiro e de Minas Gerais para a elucidação do crime. Isto poderia gerar um conflito de competências, que poderia atrasar o processo. A vítima teria sido sequestrada no Rio, mantida em cárcere privado em Minas, onde também teria sido morta.
O juízo competente para o julgamento dessa causa deverá ser encontrado aplicando-se a teoria do resultado, adotada pelo art. 70 do Código de Processo Penal (local da consumação), somada à regra do art. 78, inciso I, do CPP (local da prática do crime contra a vida, que também é a infração mais grave).
A casa do ex-policial “Bola”, onde a moça teria sido morta, fica em Minas Gerais. A ser assim, o juízo competente seria o da Vara do Júri da Comarca de Vespasiano. Mas a ordem de prisão foi emitido pela Justiça de Contagem.
3. É possível julgar alguém por homicídio sem que o corpo da vítima apareça?
Sim e não. Depende.
Nos crimes materiais, aqueles que deixam vestígios, é necessário realizar o exame de corpo de delito. O art.158 do CPP cuida do tema:
“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”
Num crime de homicídio, o que pode servir como corpo de delito indireto? A localização de ossos ou fragmentos de ossos importantes (do crânio e do tórax, especialmente), partes de órgãos vitais (como cérebro, coração e pulmões), ou grande quantidade de sangue e outros tecidos corporais.
A prova testemunhal também pode ser relevante (art. 167 do CPP). Imagine um homicídio praticado em alto-mar, mediante o lançamento da vítima no oceano. Vez por outra clandestinos em navios são mortos assim. Dificilmente os corpos são encontrados. Seria necessário comprovar a presença da vítima no local e somar esses indícios (art. 239 do CPP) à prova testemunhal, para reconstruir a dinâmica do crime e inferir um resultado.
Somem-se a isto os antecedentes do fato. Depoimento em vídeo gravado pela vítima. Comprovação de violência anterior. Existência de motivação para livrar-se da vítima. Comprovação de que o suspeito teve oportunidade para a prática do delito. E a entrevista desastrosa do suspeito em relação à situação em que Adriano se envolveu (“quem nunca bateu em mulher?”).
Portanto, a utilização da prova indiciária é possível no caso em questão. Mas é preciso ter cautela. O goleiro é apenas um suspeito. Na crônica forense brasileira há dois casos que tiveram desfechos incompatíveis com as aspirações da Justiça. Foram erros judiciários terríveis e irreparáveis.
Em novembro de 1937, em Araguari, Minas Gerais, os irmãos Sebastião e Joaquim Naves foram acusados da morte do primo de ambos, o comerciante Benedito Pereira Caetano. Embora o corpo da vítima não tivesse sido encontrado, os
irmãos Naves
foram torturados pelo delegado Chico Vieira, confessaram e foram levados a julgamento. Defendidos pelo grande advogado João Alamy Filho, o tribunal do júri os absolveu, mas, infelizmente, em recurso do Ministério Público, foram condenados em 1939 pelo TJ/MG a 16 anos de reclusão. Cumpriram parte da pena até que em 1952 o “morto” Benedito apareceu vivo. Dizem que é o maior erro judiciário da história republicana brasileira, Não duvido.
Nos anos 1960, os sinais trocaram. Um aparente culpado saiu livre. Em 1961, a socialite tcheca Dana de Teffé desapareceu misteriosamente na Via Dutra, entre Rio e São Paulo. O advogado Leopoldo Heitor de Andrade Mendes, que com ela viajava, foi considerado o principal suspeito da morte. Julgado pelo tribunal do júri de Rio Claro/RJ foi absolvido. Na acusação, o promotor César Augusto de Farias. Na defesa, atuou o próprio réu, que fez prevalecer a tese de que Dana teria sido raptada por espiões tchecos. Ah, a Guerra Fria! O corpo nunca foi encontrado. De quando em vez, Carlos Heitor Cony pergunta onde estão os ossos de Dana de Teffé. O jornalista Muniz Sodré escreveu uma crônica brilhante sobre o júri de Leopoldo Heitor: “O Fantástico Dr. Leopoldo”.
Segundo tempo
Depois do intervalo histórico, o segundo tempo. E minha opinião.
Tudo no caso Eliza é muito triste. A Lei Maria da Penha não funcionou para a vítima. Essa lei Maria “dá pena”. Jogar pedra na Geni também é crime. O “espetáculo” agora é no fórum. Os aplausos dos torcedores sumirão. O jogador suspeito deverá esperar o voto dos jurados, que acompanharão lance por lance a partida entre a acusação e a defesa. Por enquanto, os polegares apontam para baixo.
Tirando os exageros midiáticos, os órgãos de persecução vêm fazendo um bom trabalho. Mas ainda falta escalar um craque nesse ataque, que poderá ser fulminante contra a defesa do goleiro suspeito. É o 5-Amino-2,3-dihidro-1,4-phtalazinediona, conhecido como C8 H7 N3 O2. A Polícia precisa fazer o teste com luminol na casa onde Eliza Samudio teria sido morta e desmembrada e dada aos cachorros. Se essa cena dantesca aconteceu naquela casa em Minas, deve haver muito (!) sangue lá. E não só sangue. Também poderão aparecer vestígios de tecidos corporais, restos do hediondo repasto canino. Cadê o luminol para provar que a defesa do goleiro é furada? Qualquer falha da investigação, poderá gerar impedimento.
Este e outros eventos estão por ser devidamente demonstrados. Por isso, ainda é cedo para “soltar os cachorros” em cima do guarda-redes. Mesmo sem replay, parece que o goleirão cometeu uma falta gravíssima na grande área. Há sangue no gramado, um cenário de luto no meio do caminho e seu futuro está na marca do pênalti. O “rubro” e o “negro” se encontraram na história de alguém que tinha mais de 150 mil motivos para não se meter em encrenca.
Se tudo isso for provado, Bruno merecerá um cartão vermelho definitivo, confinamento na pequena área (6m2) e banimento do belo esporte de viver em sociedade. Daí em diante, “era” uma vez Flamengo. Ele continuará usando uniforme numerado, mas pelada só no time de Bangu.
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