Escrever algo sobre pedofilia não é tão simples, há muitas coisas que as pessoas já sabem e muitas que se passam apenas dentro daquele que sofre e daquele que abusa. Eu sei o quanto é horrível o que a pedofilia causa, assim como sei o quanto sofre, grande parte das vezes, aquele se vê como pedófilo. Artigos científicos, jurídicos, sensacionalistas, contando histórias e depoimentos de vítimas e de agressores não faltam. Entretanto, sei de algo que demorei para entender: o tempo que o processo de uma ação, uma má escolha, pode levar, mesmo porque essa má escolha pode durar poucos minutos, mas perdurar por muitos anos.
Minha formação é jurídica, mas sempre me preocupei com as crianças e com os direitos humanos porque sei que há pessoas que não conseguem entender as escolhas que fazem na vida, são automáticas ou então se deixam levar pelo prazer fácil e imediato, não conseguem esperar pelo próximo dia, tem de ser aqui e agora. Esses impulsos eram normais quando o homem ainda não era “civilizado”, ele se deixava levar pelo instinto animal, afinal ainda não era de todo racional. A civilização trouxe a ideia de castidade e de fidelidade. Durante muitos séculos as crianças foram tratadas como pequenos adultos e quase sempre abusadas por isso.
Na Roma antiga, séculos antes de Cristo, o casamento era normal quando a menina completava 12 anos, mas só se ela assim o quisesse, entretanto, a expectativa de vida era bem menor, deveriam aproveitar o tempo útil da mulher para procriação. Essa ideologia foi mudando porque a mulher foi tendo seu espaço, entretanto, esse passo demorou muito para ser dado. Os meninos ainda eram assediados, mas isso era considerado como uma honra, ainda mais se ele fosse assediado por um senador ou um filósofo. Não vejo o quanto isso mudou desde 1.000 a.C. até hoje, só mudaram as práticas, elas se modernizaram e ganharam novas cores, muito mais cinzentas.
A castidade foi uma convenção humana para que se evitasse a contaminação por doenças venéreas e, assim, a prole nascesse com problemas, mas isso somente era regra entre os homens livres, as meninas e meninos escravos eram considerados como bens e por isso poderiam ser abusados. Mais uma vez não vejo muita mudança nos padrões dos costumes. O que pode ser percebido é que a mudança está não nos atos, mas na implicância que se tem deles, ou seja, se antes era comum, hoje é crime. A criminalização do abuso sexual infantil se dá quando a criança passa a ser vista como um ser diferente do adulto, ou seja, ainda em formação e que as situações pelas quais essa criança passa na infância são determinantes em seu futuro.
Hoje posso dizer sem preocupações que sei quanto tempo demora para uma pessoa entender todos esses processos. Primeiro que a mudança de costumes não se dá do dia para a noite e é bem necessário que haja uma conscientização desses novos valores. São costumes que estão imbuídos no ser humano como sendo normais, temos muito mais de inconsciente em nós do que imaginamos. Freud é um precursor dessa ideia de forma científica. Apenas dizer que é crime não faz com que o abusador sinta isso como valor, afinal isso foi imposto e não ensinado. Por isso a importância das campanhas e das explicações. Porque, afinal de contas, não se sabe até que ponto esse abusador não é também um abusado que não soube lidar com isso por diversas razões. Segundo, demorei 20 anos para processar o que aconteceu aos 6, foi um processo longo e sem que a família soubesse o que fazer ou como fazer. A família deveria ser uma das bases mais essenciais da vida, no entanto, às vezes, é ela quem desestrutura esse alicerce mais importante.
Desde a formação das aldeias a família tinha um papel importante para a manutenção da vida da prole, conforme os perigos de ataques à aldeia foram diminuindo, a família passou a ser a base da formação ética e moral. Contudo, nem sempre a família sabe qual a ética que deve ensinar e muito menos qual a moral correta. O pior, que eu vejo, não é somente ter um abusador na família ou ser parte de uma família em que uma criança foi abusada, mas sim a inércia familiar diante dessa situação. Às vezes se vêem mais perdidos que a própria criança. Com a migração das pessoas do campo para as cidades a prática da pedofilia, que ainda era comum e não era de conhecimento de pessoas fora da família, passaram a ser consideradas absurdas, mas demorou até que se chegasse a esse ponto em que estamos hoje de conscientização de que é crime e que causa graves problemas no desenvolvimento da criança.
Eu demorei tanto tempo para compreender o valor da família na minha vida porque foi nela que eu vi quebrar o primeiro laço importante de confiança. O abuso aconteceu longe dos olhos dos outros, mas perto demais da minha infantil consciência de saber que algo estava errado, só fui entender 20 anos mais tarde, sem que a família soubesse o que fazer nesse tempo. Hoje a mídia diz o que deve ser feito, as pessoas tem informações suficientes para saber ao menos que devem chamar alguma autoridade para resolver o caso, há 20 anos isso ficava entre a família, morria ali, em meio a um silêncio ensurdecedor, como se a criança fosse a mais culpada. Por isso é que é importante esse avanço que demorou 2.000 anos para a humanidade e 20 anos para mim. Eu posso dizer que sou parte de uma pequena parcela que soube lidar com o abuso na infância e, por isso mesmo, não tenho problemas em dizer, porém eu sou uma minoria, infelizmente. Em razão disso é que a campanha deve se estender ao longo dos anos e do espaço para que não demore mais 2.000 anos até que uma criança possa ser apenas criança.
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